sexta-feira, 5 de março de 2010

A nebulosa ditadura





Eu tive um professor de geografia no primeiro ano do ensino médio que se chamava Sócrates (nome bastante sugestivo) que talvez tenha despertado em mim essa curiosidade por significado e mensagens em letras de músicas. O professor Sócrates não queria apenas nos ensinar sobre rochas, solo, ou população, ele sempre dizia que sua função era nos ensinar a pensar e não nos ajudar a decorar informações para passarmos em provas de colégio ou vestibular e assim levava várias músicas da de diversos compositores da época da ditadura. Pois bem, o post de hoje é sobre uma música que todos nós conhecemos, achamos linda e muito de nós apesar de termos a letra decorada talvez não a interpretamos de maneira correta (ou talvez de maneira nenhuma). O fato é que as palavras na música por vezes pode parecer soltas, meramente parnasianas, mas não são. Cada palavra na música de hoje é cheia de significado e metáfora para que pudesse passar despercebida pela censura ignorante e inculta que a ditadura (ainda mais inculta) por muito tempo nos impôs. Aliás, esses dias escutei um senhor se lamentando pelo fim da ditadura, enquanto esperava para ser atendido num consultório médico. Ele falava com um outro homem que na época da ditadura não tinha violência (vejam só) e as pessoas podiam dormir de portas abertas.
Bom se as pessoas podiam dormir de portas abertas eu realmente não sei, mas que havia violência nesse época isso eu posso garantir. A ditadura militar teve início em 1964 após um golpe militar que tirou o Presidente João Gulart do poder no dia 31 de março. Essa é uma das histórias mais contadas do Brasil. Naquela época jornalistas eram perseguidos, estudantes torturados e até hoje são inúmeros os desaparecidos. Havia uma polícia política especial chamada DOI-CODI que torturava e matava os que eram contrários ao regime do governo. Se isso não é violência eu não sei então que nome atribuir.
Voltando ao assunto da música hoje; vou fazer algo que ainda não fiz nas postagens anteriores, vou decompor a música trecho a trecho. Para isso é importante algumas explicações:
A rede globo apoiou a ditadura militar escondendo certos acontecimentos e tentando entreter através de sua programação. A ditadura impôs a todos uma grande amordaça e a única forma de expressão era através da música. Muitos artistas se refugiaram em outros países. Enfim acho que você já deve saber de que música eu estou falando. "O bêbado e a equilibrista" é uma composição de João Bosco e Aldir Blanc que foi imortalizada na interpretação de Elis Regina. A música foi muito bem interpretada pela cantora não apenas por sua técnica apurada e bela voz, mas porque Elis sabia exatamente o que estava cantando, sabia o significado e o peso de cada palavra proferida na canção. Vamos a ela:

O Bêbado e A Equilibrista

Elis Regina

Composição: João Bosco e Aldir blanc

"Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos...

(O viaduto da gameleira em BH, obra do governo que desabou em cima de carros e ônibus matando muita gente porém, nada foi noticiado pela Globo. O bêbado representava os artistas em geral que eram contra o regime militar e ousavam levantar sua voz contra a ditadura)

A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

(a lua faz alusão ao símbolo arredondado da Globo que se colocou a favor do regime. As estrelas são os generais da época donos do poder. O brilho de aluguel eram as vantagens que a Globo e outros grupos tirava da ditadura)

E nuvens

Lá no mata-borrão do céu

Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
(
As nuvens são uma metáfora aos torturadores, pois eram intocáveis e inalcançáveis. o mata-borrão do céu era o DOI-CODI. Os rebeldes eram as manchas, um erro na escrita que deveriam ser "apagados" e o sufoco louco eram claramente as torturas sofridas e mesmo assim alguns artistas não se calaram e faziam as irreverências assim como essa música)

O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Prá noite do Brasil.
Meu Brasil!...

(uma metáfora bastante utilizada por artistas da época era comparar a ditadura com noite enquanto a volta das liberdades políticas era comparada ao amanhecer)

Que sonha com a volta
Do irmão do Henfil. (
O sociólogo Betinho conhecido no mundo pela "ação cidadania" estava fugido do brasil devido a ditadura, ele é irmão do cartunista Henfil)
Com tanta gente que partiu (
referência aos exilados)
Num rabo de foguete
Chora!
A nossa Pátria
Mãe gentil
Choram Marias
E Clarisses
No solo do Brasil...

(Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho, morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice era esposa do jornalista Wladimir Herzog também morto pelo DOI-CODI em outubro de 1975)

Mas sei, que uma dor
Assim pungente
Não há de ser inutilmente (
nenhum sofrimento será esquecido, nada vais sair de graça um dia haverá justiça)
A esperança...

Dança na corda bamba
De sombrinha
E em cada passo
Dessa linha
Pode se machucar... (
os artistas se arriscando a serem torturados e mortos por um ideal de liberdade política e democracia)

Asas!
A esperança equilibrista (
esperança de democracia que luta para não cair diante da opressão, ou seja o bêbado e a equilibrista são os artistas e a esperança da mudança)
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar..." (
mesmo com todos esforços para calar a verdade é preciso lutar contra os opressores)

Com o regime a inflação aumentou e o poder de compra diminuiu, com isso os alimentos sumiram das prateleiras gerando as filas do feijão, do açucar, fila do gás, postos de gasolina fechados aos domingos e feriados e enquanto isso os brasileiros alienados assistiam o futebol e as novelas da globo e tudo que questionavam na época era: "Quem matou Odete Roitman?"

Bem, muita gente pode ter achado o post de hoje um tanto longo, mas tudo isso foi bastante resumido, o tema de hoje pode ser assunto pra uma vida inteira.

Abraço e até a próxima.

para ouvir "O bêbado e A equilibrista" clique aqui